Estava a ler o livro que serve de imagem a este post e deparei-me novamente com uma fenomenal crónica de que dele faz parte. Não resisto a publicá-la. É sobre a memorável e extraordinária vitória do FC Porto sobre o Celtic em Sevilha, em 2003. Foi escrita por Cristiano Pereira, um grande portista. Só pode.
"O meu dia 21
6 da manhã, Alfama, Lisboa - Acordo, isto é, salto da
cama (mal fechei os olhos com a ansiedade), tomo um duche, enrolo o cachecol e
saio à rua.. Está sol. E sinto uma felicidade rara, um furacão de contentamento
de quem ainda se está a aperceber que afinal, foda-se, afinal vou. Afinal vou à
final. E vou mesmo. Há 12 horas atrás chorava de frustração e agora quase de
emoção. Já estou a ir. Caralho. As ruas parecem bonitas, o planeta é belo.
Desco a Santa Apolónia rumo à estação do Oriente onde fiquei de me encontrar
com 4 amigos que estavam a chegar do Porto. As pessoas que se cruzam comigo(e
com o azul que me abraça o tronco) lançam-me luminosos sorrisos, erguem o
polegar e não raras vezes vociferam "Boa sorte" ou "hoje somos
todos da mesma cor". Há carros que apitam.
7 horas, Lisboa - Frente ao Vasco da Gama, vislumbro o
carro dos meus amigos. Um deles tem o cabelo pintado de azul e metade do corpo
fora da janela. É o Giró, figura incontornável do punk rock tripeiro (foi
baterista dos Renegados de Boliqueime). Ele grita. O carro apita. São sete da
manhã e estes gajos chegam bebados a Lisboa. Menos o condutor, claro. Siga para
Andaluzia, a duzentos à hora, num Audi xpto turbo qualquer coisa e a ouvir o
disco dos Dr. Frankenstein. Meio dia, Sevilha
- Escusado será dizer que o rapaz do cabelo azul
aterrou a meio do Alentejo. Já acordou. Estamos em Sevilha. Foda-se. Já vemo o
estádio ali à frente. E só dá gajos vestidos de verde. Parecem lagartos.
Estacionamos o carro. Está um calor filho da puta. E bota filho da puta nisso:
estão 41 graus. No início achamos piada à temperatura. Estamos todos de tronco
nu e decidimos ir até ao centro da cidade. Estamos desidratados. Um calor filho
da puta.
15 horas - As principais artérias do centro da cidade
estão cortadas ao trânsito. As ruas estão apinhadas de gente vestida de verde.
É impressionante a quantidade de escoceses que aqui estão. Diz-se que são mais
de cem mil. Não sei. Mas são mais do que as mães. Penso: Glasgow deve estar
deserta. O calor parece aumentar até se tornar insuportável. Bebe-se muito. Há
escoceses que nos abraçam. Fazemos brindes. Pagam-me copos. Cantam. A polícia
observa. E já há centenas de gajos literamente aterrados no passeio. Depois de
não sei quantas cervejas aparece, caído do céu, um verdejante legume. É erva. E
não é uma erva qualquer. É skunk. Enrolo o charro enquanto um grupo de
escoceses tece rasgados elogios ao Cadete. Acendo o charro e penso que, para
mim, o Cadete mais não é do que um jogador medíocre e um cromo do Big Brother.
O charro começa a bater.. E de que maneira. Filho da puta de calor.
16 horas - Estamos todos meio desorientados. É
impossível andar mais de 50 metros debaixo deste sol sem parar para beber mais
uma cerveja. Começo a sentir-me totalmente alterado pela mistura de aditivos e
pela ansiedade trepidante. Sou assaltado por uma lucidez que me faz pensar:
"Foda-se, não bebas mais. Não entres no estádio ainda mais bebado. Ainda
aterras e não vês o jogo". Há que ir para o estádio. Ainda fica longe. Não
há táxis. Os autocarros estão cheios. Vamos indo a pé. Filho da puta de calor.
Milagre: um dos autocarros abre-nos a porta. Está cheio como um ovo de
escoceses que berram e muito, eles cantam, e muito. Ficam todos contentes por
partilharmos o mesmo Bus. Somos os únicos portugueses dentro do autocarro. Eles
recebem-nos com cumprimentos e cantam. Estão sempre a cantar, estes gajos.
Filho da puta de calor.
17,30 horas - Chegamos ao estádio. É preciso ter
cuidado com o bilhete. Anda aí gente capaz de matar só para roubar o apetecido
rectângulo de papel. O meu está guardado dentro da sapatilha, envolvido em
plástico. Entro no estádio. Nem sequer me revistam. Subo ao meu lugar,. Estou
na bancada central, "Grada Alta, Puerta P, Sector 201 B, Fila 20, Asiento
25". Sento-me. Agora sim. Penso: foda-se, estou mesmo aqui. Fico durante
minutos calado a saborear essa constatação. A realidade. Este lugar é
excelente. Está mesmo a meio do relvado, uns metros acima do banco do Celtic. À
minha volta portugueses misturam-se com escoceses. Até o verde do relvado
parece adquirir uma luz especial. Um calor filho da puta.
18,20 - Ao meu lado está um puto castiço. Falamos da
ansiedade e do desespero. Há logo uma sintonia incrível, uma inegável
compreensão mútua. Ele, tal como eu, tinha arranjado bilhete poucas horas
antes. Um calor filho da puta. Digo-lhe que vou ao bar comprar garrafas de
água. Desco a bancada. Azar nítido: está uma fila interminável para o bar. Fico
parvo a olhar para aquilo. Penso num esquema. Chego junto de um enfermeiro da
"Cruz Roja" e peço-lhe água com açúcar. Ele leva-me ao gabinete
médico, uma sala com ar condicionado repleta de escoceses que dormem que nem
porcos derrotados pela coma alcoolica. "Pois", digo eu ao médico
simpático, "não dormi nada com a ansiedade e alimentei-me mal. Este calor
também não ajuda. Fiquei fraco", dramatizo, exagero, enfim, um teatro do
caralho ajudad pela pedrada da erva. Ao médico não lhe passa pela cabeça que eu
apenas ali estou para evitar a fila do bar. Dá-me um sumo energético. Fico lá
durante uns 10 minutos a curtir o ar condicionado. O gajo aponta o meu nome num
papel. Saio e trago outro sumo para o puto que me espera na bancada. Passo pela
fila do bar e vejo que ainda está maior. E que não anda nem desanda. Feito
esperto, rio-me para dentro com um inevitável e muy tripeiro pensamento:
"vocês são mesmo morcões, caralho". Já não há ar condicionado. E,
claro, está um calor filho da puta.
19 horas - A curva à minha direita está cheia. De azul.
De vida. De beleza. Os portugueses entraram mais cedo no estádio. Canta-se
muito. Eu também canto. Está um calor filho da puta. Entretanto, a primeira má
cena do dia: os jogadores, lá em baixo, no relvado, a aquecer e, foda-se não
estou a ver nenhum caralho de cabelos claros, o pânico e a dúvida apoderam-se
de mim e berro: "CARALHO! ONDE ESTÁ O JANKAUSKAS?". Não está. O que
está é o calor. E um calor filho da puta.
19,15 horas - Lentamente, a bebedeira vai desaparecendo
e os efeitos da erva vão, claro, esmorecendo. Só o calor é que parece aumentar.
E o nervosismo, claro. O estádio já está cheio. Olho para as bancadas e fico
assustado com a quantidade de verde que vejo. Os gajos começam a fazer muito
barulho. Foda-se. Só cantam. Umas atrás das outras. Um repertório maior do que
o Frank Zappa. Esta merda vai começar e tenho que me acalmar.
19,45 - Começa o jogo. Confusão do caralho. Ninguém
domina ninguém. Está tudo nervoso. Com medo. Olha, o Costinha foi ao chão.
Caralho. Filho da puta. Não era ele que dizia que tinha recuperado da lesão?
Foda-se, já ficamos sem o Costinha. Caralho. Não estou a gostar disto. (não
olhei mais para as horas, só para o horário do jogo)
20,30 (mais ou menos) - O Porto sobe, Deco levanta a
puta da bola, Alenitchev está lá, eu levanto-me, vejo o gajo a rematar de
primeira, uma bomba autêntica, o cabrão do Celtic não completa a defesa, e
caralho, foda-se!!! Está ali o Derlei, foda-se, caralho AS REDES ABANAM E É
GOLO CARALHO! Bem, aqui eu não sei bem, acho que mando um salto, desco uns sete
ou oito pisos da bancada e atropelo tudo à minha frente, desde escoceses a
portugueses, passando por garrafas de água e sei lá que mais. Estou fora de
mim. Acho que nem grito "golo" porque a euforia me corta a capacidade
de articular sílabas. Só berro qualquer coisa. Já estou como o outro: não há
orgasmo que se compare a isto. intervalo. Tento acalmar-me. Vou buscar mais
água. Não há fila. É estranho. Porquê? Que cena do caralho: acabaram as bebidas.
Foda-se. Nos dois únicos bares de uma bancada cheia debaixo de 38 graus e não
há agua, sumo ou a puta que os pariu? A espanhola giraça que está no bar
depara-se com centenas de gajos desesperados e desidratados. Começa a
distribuir cubos de gelo a toda a gente e a pedir calma. Num acto de desespero
apanho umas garrafas vazias do chão e vou à casa de banho, torneira aberta,
encho as garrafas e ainda molho o meu corpo todo. Começo a aperceber-me que a
minha garganta está esquisita, isto é, a minha voz, caput, foi com o caralho.
Segunda parte. Os gajos marcam o golo. Foda-se. Um
barulho descomunal. Nunca (ou)vi nada assim. É impressionante. Chega a ser
assustador. Fico na merda. Novo golo do Porto. Foda-se. Agora já nao atropelei
ninguem, abracei-me ao puto, caralho, vamos lá ganhar esta merda. "Vamos
ganhar 3-1, vocês vão ver", diz-me um tripeiro mais velho. E volta a dizer
o mesmo. Outra vez. E mais uma vez. E pimba!, os gajos empatam novamente, eh
pá, puta que pariu, como é que deixam aquele cabrão ali sózinho na area,
caralho? Olho para o tripeiro profeta com aquela cara de quem diz "devias
ter estado calado meu ganda boi de merda". Os escoceses fazem outra vez um
barulho ensurdecedor. O estádio até parece tremer. Os que estão atrás de mim
berram-me ao ouvido. Há um deles que chega a pôr a mão na minha cabeça e
despenteia-me todo. Eu estou fodido, claro, mas tenho fair play, nem olho para
trás, o gajo está na boa, desde que não me meta a mão no cu. E não só. Começo a
ficar fodido. Fico calado minutos a fio. Já nao sei se sinto nervosismo,
ansiedade ou depressão. Estou sentado, calado que nem um rato, as mãos na
cabeça, o coração a 320 batidas por minuto. Estou a sentir-me mal. Vejo o
Celtic a dominar o jogo. Os gajos sempre a cantar. É tudo deles, foda-se. É uma
tortura: começo a pensar que não devia ter ido, que sofrimento já chegava, que
aquilo é tudo uma merda, que o futebol não vale um caralho, que são só meia
dúzia de gajos básicos atrás da bola, que o que eu gosto é de música e poesia e
que caralho, eu juro, foda-se, juro mesmo que nunca mais vou ao futebol na puta
da minha vida. O puto ao meu lado deve estar como eu. Não diz nada. Às tantas
abre a boca e diz-me: "Eu já não sei". Foda-se. Começo a experimentar
a amargura do sofrimento mais forte que alguma vez senti. Tenho a vida reduzida
a merda.
Às tantas visualizo na minha mente pessoas e alguns
nicks do pessoal aqui do fórum (O Flash, O Plasmatron, o Manel Poças e a
Anfield Road, tudo gente que nunca vi) e tento imaginar onde estarão eles
àquela hora, e a pensar que deviam era estar aqui, mas, caralho, como não
estão, tento entrar numa espécie de comunicação telepática com eles, de forma
a, sei lá, encontrarmos um ponto de convergência mental, juntar as forças,
lança-las para dentro do relvado, como se a nossa vontade pudesse cair ali
dentro como uma espécie de relâmpago e fazer com que o Porto não perca bola e
faça passes certos, foda-se.... eu quero que a bola esteja no meio campo deles,
não passem a bola ao Baía, caralho, é para a frente que se joga, e às tantas há
alguém (não me lembro quem) que volta a passar a bola ao Baía e eu aí é que me
passo mesmo dos cornos. Levanto-me. Grito: "Ó FILHO DE UMA PUTA DO CARALHO
É PARA A FRENTE CARALHO PARA A FRENTE CARALHO!!!!!!! (ou coisa do género, não me
lembro bem). À minha volta, num raio de 20 metros está tudo sentado, o pessoal
olha, quem é que aquele portuga lingrinhas e de tronco nu, cromo do caralho, a
gritar qualquer coisa? Os escoceses atrás de mim comentam algo entre eles num
calão indecifrável. E riem-se muito. Riem-se de mim. Estão-se a rir de mim,
filhos da puta?
O jogo acaba, há prolongamento e eu começo a ficar
preocupado com a minha saúde. Tento respirar fundo durante alguns minutos e
começo a sentir-me relativamente melhor. Até porque o Porto já parece saber
jogar à bola. Vejo o tempo a passar e só desejo mais um golo, caralho, não peço
mais, basta um, foda-se, onde está o Postiga quando preciso dele?, caralho, e
entro outra vez no transe de sofrimento, estilo começar a pensar para mim
"foda-se, eu até dou os meus discos todos e o meu ordenado só para
ganharmos esta merda" e outras merdas do género completamente
inconcebíveis num momento mais racional. Segunda parte do prolongamento.
Sinto-me perto da morte. Tento acender um cigarro. A mão direita treme de tal
forma que nem sequer consigo encostar a chama à ponta do tubo de nicotina.O
telemóvel treme no bolso. É uma mensagem escrita do Junqueira a dizer "tem
calma pá.... a gente já resolve isto" e, de repente, volto a pensar na
história da telepatia, e pergunto-me "mas como é que o gajo sabe que eu
estou assim?" e depois penso que s calhar até é natural ele imaginar mas
não deixo de pensar na telepatia e sinto-me mais confortável com aquelas letras
"tem calma pá" como se eu fosse um puto assustado com algo e tivesse
chegado o pai para proteger. Há o 3º golo do Porto. Não sei o que escrever. É
um momento muito prateado, uma espécie de luz branca à minha volta. Devo ter
gritado e saltado, sei lá, eu já nem estava no lugar, fui para os degraus mais abaixo
e estava a ver aquela merda em pé, pá, nem sei bem. Sim, era tudo branco, uma
espécie de névoa, estava tudo meio desfocado, e convenci-me que era Deus que
ali estava a ajudar-me e fiquei fodido por nunca ter ido á missa e essas merdas
e o caralho, e por já ter tido a mania que era anti-cristo na minha
adolescência, e que afinal, caralho, Deus existe, e estava
ali ao meu lado e eu sem saber como agradecer-lhe e pedir-lhe desculpa por
todos estes anos de falta de fé. O jogo acaba. Acho que abraço toda a gente e
toda a gente me abraça e que tenho os braços no ar e que tento gritar qualquer
coisa mas que não consigo porque já não tenho voz e então limito-me a saltar
que nem um cavalo. Os escoceses atrás de mim dão-me os parabéns e apertam-me a
mão e eu, pimba, toma lá um abraço também, e a puta da vida é isto e nada mais
existe na vida para além disto e deste resultado.”
5 comentários:
podia ter sido eu a escrever isto,
com a excepção de que estava no topo onde se encontravam os sd.
de resto igual.
O texto está fabuloso. Tirando o charro, o resto vivi igual! Estava atrás da baliza do terceiro golo e pensei que ia morrer no estádio de exaustão, desidratação e emoção. Lindo!
O futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais do que isso!
Sempre senti uma grande tristeza por ter ficado a 20 metros do bilhete para Sevilha.
E não ter tido, assim, a oportunidade de viver o fabuloso ambiente que o Cristiano, o Alex, o Grilo e tantos outros viveram.
Quem é o Cristiano Pereira? Só me lembro do hoquista mas não pode ser.
Este é jornalista do JN, na secção de Artes.
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